Como fazer um cachorro feliz (segundo artistas)
Com uma cachorra em pânico e fobia de ruídos, recorri à arte e aos canabioides para socorrê-la dos monstros sonoros que a assustavam.
Oi gente! Tudo bem?
Sou artista plástica e moro no Rio de Janeiro. Na semana passada comecei uma residência artística no iii Instrument Inventors em Haia, Holanda onde fico até meio de Abril para produzir minha nova performance chamada Fantasma Boca ao lado de Thiago Lanis. Desde a última newsletter, eu venho tendo alguns desafios com minha cachorra e quis escrever um pouco sobre essa jornada, que é difícil e ao mesmo tempo feliz. Como estou fora do país, a Cacau está em um rancho sendo cuidada pelo Seu João que ela adotou como “avô” e, como ela adora uma função, gosta de ir à roça com ele achando que vai ajudá-lo em algum trabalho.
Nesta edição
Como artistas convivem com cachorros e desdobram a relação interespécie em trabalhos e formas alternativas de viver. Se você ainda não assina esta newsletter, clique aqui para receber meus próximos textos (é grátis, não precisa doar nada) e aqui para ler os anteriores!
Uma grande fonte de preocupação
Tenho orgulho de pertencer ao clube global de millennials que adotaram vira-latas durante os meses de isolamento de 2020, em vez de ter filhos. Essa parecia uma ótima ideia. Assim que vi a Cacau ainda filhotinha, percebi que ela era muito inteligente e obediente quando chantageada com comida. Na minha inocência, resolvi mentalmente que a Cacau seria preparada para uma vida agitada, ativa, que me acompanhasse na maior quantidade de espaços possíveis, no trabalho, e que permaneceria na medida do possível uma cachorra com comportamento de cachorra. Uma vibe meio Brancusi em Paris, em 1927.
É possível uma vida tão simbiótica com um cachorro? Não sei. Mas fomos muito felizes durante muitos meses de pandemia quando nossa circulação era também bastante limitada. Depois de dois anos de covid19, o mundo se tornou novamente ou ainda mais barulhento e o nervosismo da Cacau com os estrondos da civilização foi se agravando. Cacau, antes valente no mato, tímida com gente e uma palhaça assanhada com cachorros, estava se transformando em uma bicha acuada que detesta o mundo dos homens. Fogos, multidão, gritos de criança, se tornaram verdadeiros monstros sonoros para ela. O stress da cidade ficou insustentável. É só ver o que acontece quando essa cachorra vai para o mato. A audácia dela se multiplica por cem, ela pensa que é uma onça e eu fico achando que ela não é mais um pet, mas um bicho do mato cheio de missões geográficas que eu não entendo, mas que a deixam completamente alerta e atiçada.
Esses comportamentos me ajudaram a entender quais raças de cachorros minha vira-lata contém, já que muitas raças arrasam em um quesito e são péssimas em outros. Nem lembro sobre quantas raças eu li, e sobre como se expressam as misturas entre raças caninas. Aliás, uma das coisas que me ajudou a me situar, foi este vídeo incrível do biólogo e youtuber Atila Iamarino que explica uma possível origem do vira-lata caramelo. Fui somando as características mais marcantes dessa bagunça genética e suspeitando que o ouvido infalível e profundo da Cacau é de uma pastorinha que quer organizar um pasto que não existe, com ovelhas fictícias e perigos imaginários.
Síndrome de Vira-Lata
O escritor americano John Steinbeck teve uma sorte diferente. Em seu livro Viagens com o Charley de 1962, Steinbeck levou seu poodle standard (aquele poodle gigante) de 10 anos de idade a inúmeras cidades dos Estados Unidos de carro pela infame estrada Rota 66, em busca de um “redescobrimento” do país que passava por profundas transformações econômicas e sociais. Seu poodle standard é uma raça extremamente obediente e inteligente, com alta tolerância ao stress que é viver entre humanos. A importância do animal era tanta para o escritor que ele o chamava de seu “embaixador”, um animal “diplomático” ao lado do qual o escritor encontrava conforto e também projetava seus anseios. Nos momentos mais difíceis, onde Steinbeck sentia a miséria e a degradação humana nos Estados Unidos invadir seu espírito, escreveu:
“Estou convencido de que cachorros acham que os humanos são completamente loucos.”
Mas o que acontece com os cachorros menos afortunados que Charley? Aqueles que são abandonados ou nascem e crescem sem tutores, no meio da cidade? Eu como tutora zelosa da Cacau, fico angustiada só de imaginar. Daniel Steegmann Mangrané, artista espanhol baseado no Rio de Janeiro, fez um filme maravilhoso sobre isso em Dhaka, Bangladesh, onde retrata um grupo de vira-latas que habitam um famoso edifício modernista daquela capital.
Em uma entrevista sobre Fog Dog, Daniel conta que ficou muito impressionado como esses cachorros eram completamente ignorados pelos humanos, vivendo uma espécie de vida paralela. Como era de se esperar, os cães desenvolveram suas técnicas de sobrevivência, sendo a principal, usar de toda sua lindeza para conseguir restos de comida de um guarda noturno (assista aqui). Nesse filme, é possível perceber que nossas espécies são tão profundamente interligadas, que, na falta de donos que ofereçam alimento e cuidado, cachorros resilientes podem adotar até mesmo a arquitetura como uma grande líder, mãe e provedora.
Tocar música para um cachorro em pânico
“O que mais se requer do humano é precisamente o que a maioria de nós nem imagina que não sabe como fazer – isto é, como enxergar quem são os cachorros e como ouvir o que eles estão nos dizendo, não de maneira abstrata e fria, mas com o estabelecimento de uma relação cara a cara, de uma alteridade conectada.
Haraway, Donna. O manifesto das espécies companheiras (#Mundojunto) (p. 40). Bazar do Tempo. Kindle Edition.
A tranquilidade total dos cachorros abandonados no meio da maior cidade de Bangladesh é chocante para mim, que tenho uma vira-lata privilegiada que mora em apartamento da Zona Sul do Rio de Janeiro e que há pouco tempo poderia surtar com qualquer barulho. Nesses últimos meses tive que encontrar formas para que a existência da Cacau no Rio de Janeiro fosse menos dolorosa, e até mesmo menos perigosa, já que se assustada em um parque, solta, Cacau poderia fugir, se machucar e até morrer, e eu já vi isso quase acontecer uma vez.
Lendo alguns artigos, entendi que era fundamental melhorar a sensação de bem-estar e segurança dela em sua própria casa. Minha casa deveria se tornar uma baita de uma toca de cachorro, a megazord das tocas blindadas. Isso incluiu comprar uma casinha de madeira, colocar florais goela a baixo da cachorra, tocar música para ela e enfiá-la debaixo do chuveiro quando nada mais desse certo.
Essas pequenas ações não trouxeram nenhuma melhora relevante na sua fobia e me deixaram ainda mais frustrada. Algumas semanas antes de uma viagem para os Estados Unidos, eu já estava tentando coordenar uma consulta por vídeo com um veterinário americano para tratá-la com medicamentos mais fortes, até mesmo anti-depressivos, já que nem sair de casa a minha cachorra queria mais. Eu comecei a ficar bastante desesperada quando a Cacau começou a dormir praticamente o dia todo, deprê, tristésima, e pedi de novo ajuda à veterinária que a acompanha.
Uma ótima treinadora observou a Cacau em todos os seus ambientes e me fez entender o seguinte: um cachorro precisa confiar no mundo dos homens, precisa confiar que estará seguro também do lado de fora da toca. E como fazer isso? Pare de o alimentar em casa, o alimente somente do lado de fora, durante os passeios. Dentre todas as coisas que eu tenho que fazer todos os dias, teria que adicionar mais duas marmitas para a cachorra - inacreditável - mas eu já estava topando qualquer coisa. Para minha alegria, isso realmente começou a transformar o comportamento da Cacau para melhor, e acredito que esse remédio caro e milagroso, um biscoito com canabidióis (CBD) próprios para cães que ela consome todo dia, foi o que consolidou uma mudança real.
Um cachorro, salvo pela música
Laurie Anderson, uma artista brilhante que faz o que quer e que é uma das minhas maiores inspirações, fez um dos melhores filmes de todos os tempos sobre cachorros. “Heart of a Dog” é uma lição de “alteridade significativa”, este estado de compreensão mútua entre espécies, um tipo de escuta sofisticado e afetivo, segundo Donna Haraway.
Quando sua cachorrinha Lolabelle ficou cega, Laurie Anderson a ensinou a tocar piano (acima, é possível assistir o álbum de Natal que sua cachorrinha gravou). Laurie diz que ela passou a tocar o instrumento pelo menos uma hora por dia, a fez recuperar a alegria de viver e que isso “salvou a vida de Lolabelle”. Em “Heart of a Dog”, acompanhamos na voz de Anderson também todas as partes doloridas da despedida de um animal e do que fica impresso em nós nesta relação tão preciosa. Fico imensamente feliz que encontrei conforto no trabalho de outros artistas, além de conseguir escutar as necessidades da Cacau com pesquisa, paciência, lágrimas, tentativa e erro. Ela segue muito bem, mas seus medos não sumiram, estão só dormentes e estou aqui atenta para que eles assim continuem.
um grande beijo e até a próxima!
Vivian Caccuri
Our team https://www.jacquesbrasserie.com/ of talented chefs brings years of experience and passion to the kitchen, where they artfully transform fresh, high-quality ingredients into culinary masterpieces. With meticulous attention to detail and a deep respect for culinary tradition, our chefs create dishes that showcase the depth and complexity of French cuisine while incorporating innovative techniques and flavor profiles that surprise and delight.