Estou na Rússia e está tudo bem.
Como um instrumento folclórico russo me fez ir até o país no meio da pandemia.
Oi gente! Meu nome é Vivian Caccuri, sou artista plástica e mestre em Estudos do Som / Musicologia pela UFRJ. Se você ainda não assina essa newsletter, é só clicar aqui para receber todo mês!
Nesta edição
O que fiz durante minha residência na pequena cidade de Vyksa e uma playlist do melhor que ouvi na Rússia.
Hard, deep e hyper
O pop russo é enorme, denso e impossível de se resumir, mas uma coisa que posso dizer é que como quase tudo na Rússia, as música deve soar grande, enorme. Os prédios colossais de Moscou e as avenidas gigantes se transformam em efeitos de reverb, ecos e delays em muitas músicas dessa playlist. Uma coisa que ilustra o que estou falando é o nome dos gêneros mais populares nas capitais: hard techno, hard bass, deep house, drill e hyperpop. Tudo muito. Tudo over. Tudo extra. Muita energia e espaço de sobra. Algumas coisas do hard bass beiram o grotesco e essa é a graça.
Mas existe muita delicadeza também e sons exóticos, longíquos, vozes que nunca ouvi antes na música russa contemporânea. Zveta Sventana que tive o privilégio de conhecer pessoalmente e assistir seu show, me fez entender que muitos russos caucasianos estão na busca de ancestralidade e daquele entreposto de cultura e espírito, coisa que vai na maré contrária do nacionalismo defendido por Putin. Minha playlist inclui um pouco dessa vibe além de alguns hits do momento e canções hiper conhecidas como as da banda soviética KINO (Кино). O vocalista russo-coreano Viktor Tsoi é um dos heróis do final da minha adolescência e é cultuado como uma espécie de Renato Russo infinitamente mais bonito e bi-racial, um Cazuza hétero e por isso melancólico:
«« Aviso de gatilho para as últimas faixas que são true hard bass.»»
O convite
Sendo bem sincera, depois desses últimos meses eu já estava feliz em ficar esse ano todo quietinha na minha casa. Mas o roteirista da minha vida é brincalhão e me trouxe do nada um convite para ficar em residência na Rússia. Por três semanas, eu iria desenvolver um trabalho inédito em aço para o Vyksafest, festival cultural curado por Fyodor Pavlov-Andreevich nessa pequena cidade a quatro horas de Moscou. A escultura criada por mim seria feita em colaboração com a siderúrgica OMK e exibida em cima de um pedestal criado pelo arquiteto Charles Renfro.
Muitas perguntas vieram à tona antes de topar esse convite. Mas a Rússia está fechada com a pandemia! “As embaixadas vão te dar permissão.” Vocês têm certeza que vai dar tempo de fazer uma escultura gigante e uma performance inédita em três semanas? “Sem dúvida!”. Essa dose de porralouquice dos russos foi o que me fez apostar no que não sabia.
É importante dizer que não fui sozinha para a Rússia e que minha companhia mudou a minha viagem por completo. Thiago Lanis, meu companheiro que é compositor e músico também iria tocar no Vyksafest, é carioca e um homem preto, o que já faz da experiência dele totalmente diferente da minha. O enredo dele aliás, é muito mais interessante e complexo que o meu.
Chegando na Rússia
Na primeira hora na Rússia - que foi bem emocionante com direito a corrida maluca pela estação de trem e entrada no vagão no último segundo - já ficou óbvia a nossa dependência total de tradutores e aplicativos para conseguir fazer o básico. O inglês é bem desnecessário por aqui com raras exceções. Mesmo no aeroporto as pessoas não falavam inglês fluente, muito menos nos trens.
Essa chegada deu o tom da viagem inteira: nesse país eu estarei constantemente correndo contra o tempo e com sérios problemas de comunicação. Não houve nenhum dia sem esses dois anabolizantes de stress.
Balalaikas
Ir para o outro lado do mundo durante uma pandemia sendo patrocinada com dinheiro privado russo e dinheiro público brasileiro têm suas responsabilidades. O tempo inteiro eu ouvia um Ru Paul dentro de mim falando Don’t fuck it up com sotaque russo. Sabendo que a proposta era fazer uma escultura pública que se tornaria parte do acervo de esculturas do parque da cidade, não era uma boa ideia fazer um trabalho que precisasse de muita verborragia para ser explicada. Afinal eu não falo uma palavra de russo além de “sim-não-por-favor-obrigada” e “palhetada”.
Por isso, meu foco nos primeiros dias foi achar em tempo recorde uma linguagem comum entre eu e a Rússia, algo preexistente, algo que se comunique emocional e musicalmente sem precisar de muito esforço ou conceitos chiques. Meu desejo era falar com o povo russo sem usar palavras e a solução eu já tinha há alguns anos. Balalaikas! É óbvio!
Este instrumento de três cordas triangular sempre me intrigou. Tenho na minha pequena coleção de guitarras folclóricas uma balalaika feita na Ucrânia, que foi também exposta na minha instalação “Ode ao Triângulo” na Pinacoteca de São Paulo em 2019.
Meu instinto dizia que esse caminho era o que eu iria me divertir mais e que eu deveria exagerar os tamanhos, afinal estamos na Rússia. A ideia que tive foi de criar uma concha acústica na forma de uma balalaika. Uma balalaika para as proporções humanas, como uma cabana. Seria uma revelação em grande escala do interior dela.
O que me faltava naquele momento era sensibilidade e mais dados sobre contexto onde eu me encontrava. Eu cheguei na Rússia não entendendo com profundidade o significado ou a função da balalaika naquela cultura. Nem preciso dizer que ainda não entendo 100%. Mas de qualquer forma eu precisava entender esses sentimentos um pouco melhor para conseguir me comunicar visual e musicalmente através desse objeto. Além de ler etnomusicólogxs sérixs e entrevistar pessoas pra me sentir menos ignorante, as redes sociais foram o pulo do gato. Em que tese de doutorado eu ia ficar sabendo que “BALALAIKAS MAKE RUSSIANS CRINGE”? Olha que beleza de síntese:
Isso só me motivou mais. Se esse instrumento é uma fonte de vergonha, é nele mesmo que devo investir, porque é nas músicas indesejadas que os sentimentos são muito mais latentes, são instáveis e às vezes entregam pro ouvinte uma mistura muito densa de amor e ódio. Belezas unânimes são vida mas me interessa mais o som complicado e ambíguo, e essa é a mesma motivação que tenho para trabalhar com o som dos mosquitos, os triângulos, o sertanejo e soundsystems.
Criando a música
Para criar a performance Open Balalaika eu tinha mais ou menos dez dias. O prazo me fazia suar frio, em primeiro lugar por causa da minha condição de brasileira tentando entender um país novo e em segundo porque eu dependia de intérpretes para dirigir os dois músicos que tocariam minha composição: a professora Olga Pankratova e seu aluno Ustin Derygin de 12 anos.
Uma coisa que me chamou atenção nessa relação com os músicos é o apego a um repertório tradicional. Até tentei incentivar e provocá-los para saber se tinham composições próprias ou improvisos, mas não consegui muita coisa. Ao mesmo tempo, eu não queria que minha performance fosse simplesmente a apresentação de um repertório tradicional que é parte de todas as escolas de música da Rússia e que te faz lembrar aquelas “versões oficiais” de identidades e sentimentos nacionalistas que muitos governos quiseram difundir no séc XX.
Com tantas limitações que podiam fazer da minha performance uma apresentação clichê, sem alma, que não apresenta nada de novo aos russos, o mantra que ficou na minha cabeça foi o de simplificar e expandir. Pra isso, adicionei loops de frações de compassos da música, reduzindo a força que geralmente se usa para tocar, diminuindo o ritmo geral e incentivando os músicos a sentir cada corda. Em outras palavras, eu quis abrasileirar a balalaika, dar temperos de choro e bossa nova em um estilo tão severo quanto o folclore russo.
Entrega completa à engenharia de som e aos timbres que as pessoas escutariam em uma praça tão aberta também foi fundamental e é uma parte que eu amo muito. Mas dessa vez eu tinha que decidir tudo em poucos segundos. Falando desse jeito, até parece que eu estava totalmente no controle e que rolou tudo suave. Realidade: eu estava quase tendo uma crise de ansiedade aguda. Eu me sentia uma candidata do Masterchef com o tempo acabando e que já entendeu que vai entregar uma coisa crua. Mas não foi assim. Rolou muito axé do meu mozão, muito empenho do time todo e foi lindo.
Fundindo a escultura
O pragmatismo e energia infinita dos russos só me ajudaram nessa parte. Nas mãos do serralheiro Andrey Matchin minha escultura tomou forma em pouco mais de uma semana com base nos meus desenhos e em um escaneamento 3D de uma balalaika real. Toda a incerteza que foi criar a performance me foi poupada nessa parte. Meu sono agradece.
Abri a balalaika!
Sempre que penso em sacrifício e exaustão para fazer um trabalho eu penso na Twyla Tharp, que diz que um trabalho sempre mostra a “quantidade de vida” que foi posta dentro dele. Eu acho que eu não devi nada de vitalidade pra esse trabalho. As olheiras, pés destruídos, dor nas costas e desnutrição já falam por si.
E sempre vale a pena ir com tudo. Consegui sentir uma energia forte de quem foi assistir a performance na praça e senti que a balalaika virou um som sensível, um instrumento cheio de dignidade em vez de cringe, pelo menos naqueles 10 minutos de performance.
Vai ser sempre muito emocionante falar desse trabalho que fiz na Rússia, especialmente quando penso nos músicos, que já amo demais. Não me lembro de amar pessoas tão rápido sem falar sua língua, mas na Rússia aprendi que isso acontece. É muito maravilhoso o que três cordas podem fazer!
Agradecimentos sinceros a OMK, Oksana Sitchuk, Fyodor Pavlov Andreevich, Olga Pankatrova e Ustin Derygin, Andrey Matchin, Sergey Kochetkov, Marsha Bender, Sofia-Zlata Shestakovskaya e a Embaixada Brasileira em Moscou que foi muito, muito acolhedora e genial em tudo.
Beijos e até o mês que vem!
Vivian C
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