Kanye West e o cringe como substituto da felicidade
Na disputa por protagonismo midiático e controle de seu patrimônio artístico, o cringe é aliado de um Kanye West cada vez mais distante.
Oi gente! Meu nome é Vivian Caccuri, sou artista plástica e mestre em Estudos do Som Musical. Sou também sócia do Estúdio 0SS0.
Nesta edição
Kanye West está transbordando as redes com imagens ao lado de sua nova namorada Julia Fox, ambos vestidos de robôs sadomasoquistas e estamos obcecadxs por entender o que isso significa. E também uma playlist de músicas dos anos 80 e 90 do mundo inteiro!
O escapismo e o futurismo neo-liberal
Aproveitando que vou falar de escapismo através do cringe e da vontade de se tornar ciborgue, ouça essa playlist sempre crescente que montei com músicas dos anos 80 e 90 do mundo inteiro. Jordânia, Niger, África do Sul, Haiti, Brasil, Irlanda, Espanha… tem pouca coisa que me diverte mais do que imaginar o começo do delírio neo-liberal desses países.
††††† Jesus, ou melhor, YE, ou seja, Kanye West ††††
Que o pop vive de fofoca tanto quanto de música e moda, todo mundo já sabe. As estratégias para criar o desejado falatório e ocupar as mentes dos fãs com teorias da conspiração, no entanto, nunca estiveram tão sofisticadas e nunca precisaram tanto das dinâmicas da viralização e da pós-verdade quanto em 2022.
Criar um “momentum” (palavra cringe criada pelos coach que geralmente são ex-atletas) não é exatamente novo. O livro do Midani, produtor musical franco-argelino que produziu os maiores nomes da bossa-nova, Tropicália e MPB explica, entre muitas outras histórias, como o lançamento do single “Aquele Abraço” de Gilberto Gil foi sincronizado com seu vôo para o exílio na Inglaterra. Até o heroico hino de despedida de Gil, em plena ditadura, não escapou das estratégias de comunicação e manipulação das percepções do público para gerar o maior debate social possível.
Até aí, estamos falando de uma ação de arte e política bastante esperta que usou do calor do momento para propulsionar uma canção ainda mais longe e alçar Gil a poeta gladiador da democracia. Mas transporte-se para hoje. Imagine um artista genial porém narcisista ao extremo na histeria de 2022, onde uma multidão sempre crescente de influencers sem nenhum talento disputam os poucos micro-segundos de atenção do público? Nosso tempo exige medidas extremas. É necessário gerar narrativas de caos, repulsa, escapismo, dissolução entre ficção e realidade e memes infinitos para em 2022 continuar entretendo o público: nós, os zumbis cujo sistema de recompensa cerebral encontra-se falido na economia da dopamina.
O dada do Donda
Meu objetivo aqui não é criticar musicalmente o álbum mais recente de Kanye West, o Donda. Apesar de admirar como Kanye foi pioneiro de sonoridades típicas do hip-hop e r&b como o chipmunking soul e aperfeiçoar o autotune no hip-hop a ponto de virar parte indivisível do pop e trap como gênero (a primeira canção a usar o autotune é “Believe” de Cher), quis prestar atenção no extra-sonoro. A performance, as visualidades e narrativas que consagram o artista como gênio midiático, até mais do que musical. Vou também adiantando que eu gostei bastante de Donda, um álbum bastante geminiano, digamos assim, já que é bastante variado e cheio de colaborações que muitas vezes roubam a cena.
Donda, álbum cujo nome é o de sua falecida mãe, continua sua fase gospel e já encontra-se disponível nas plataformas digitais depois de uma longa novela de remarcações de datas, brigas com a gravadora e com o Drake. Mas até Kanye criar o frisson e a mídia espontânea global que gerou uma enorme ansiedade coletiva por seu novo álbum, foi um caminho cheio de memes
Antes que o álbum fosse lançado, o rapper ocupou o segundo semestre de 2021 com “festas de audição” [listening parties] presenciais e transmitidas online em três apresentações presenciais em arenas em Chicago e Atlanta. Estamos falando de um evento que gerou 13 milhões de dólares de lucro para West e uma quantidade gigantesca de debates e memes para as redes sociais. São tantos os destaques que precisei escolher só alguns: Kanye chamou sua ex-mulher Kim Kardashian para desfilar no palco vestida de noiva (claro, de Balenciaga) e insinuou um recasamento, fez um feat com o canceladíssimo Marilyn Manson e meu preferido: ateou fogo em si mesmo e em uma réplica da casa onde cresceu em Chicago.
A esperteza de Kanye nessas performances foi testar suas faixas com o público e essa é a melhor explicação que encontrei para os atrasos do lançamento do álbum. É bastante provável que artista estivesse modificando suas canções, a ordem dessas faixas no álbum e mesmo refazendo melodias em função das apresentações, além de cozinhar nossa paciência. Kanye nas apresentações, aliás, não canta ao vivo, não fala com o público e mal mostra seu rosto frustrando bastante o público, ao mesmo tempo que acaba valorizando sua “arte fonográfica”.
O teatro midiático em torno dessas audições, na minha opinião, é o que ofusca a música, que passa ocupar o plano de fundo principalmente nas redes sociais. Kanye West sabe que as redes sociais se aquecem à base da polêmica e usa todos esses elementos a seu favor ao colaborar com artistas cancelados. A controvérsia de trazer Marilyn Manson e DaBaby para o palco faz amplificar o debate e o engajamento de todo conteúdo que mencione sua marca, em uma diluição pré-programada entre música, biografia, meme, opinião pública, pós-verdade e brand.
Veja que o cringe, que pode ser explicado como a sensação de incômodo, aflição, vergonha alheia, e também uma certa sensação de caos e dúvida, é fundamental para atingir esses objetivos. O cringe é uma reação física quase oposta à ducha de dopamina que recebemos com os likes. O cringe é o anti-like. Por que competir por dopamina enquanto Kanye pode provocar algo ainda mais visceral no público? A repulsa, a dúvida! A audácia! O cringe! Neste ponto, todo mundo que está decepcionado com o BBB 22 já sabe que a raiva e a polêmica engajam muito mais do que rodas de oração ou demonstrações de afeto. Por isso, não basta criar um grande culto em homenagem à sua falecida mãe, mas sim um grande culto onde coisas reprováveis pela moralidade atual também vão ser abundantes. Segundo algumas falas do rapper em diferentes momentos e tweets, o comportamento “woke” seria essa moralidade, em outras palavras, ser consciente em relação às lutas identitárias, políticas e ambientais de nosso tempo é o campo ideológico do qual o artista quer mais se desviar. ['I don't wanna see no woke tweets or hear no woke raps ... it's show time ... it's a whole different energy right now.']
O Black Lives Matter é talvez o único fiel da balança ideológico para Kanye. O rapper doou ao menos 2 milhões de dólares para as campanhas do protesto e marchou em pelo menos um deles. De forma bastante consistente, também, consegue fundir sua defesa do cristianismo como a religião libertadora do povo preto às suas próprias farpas com as gigantes corporações de mídia e esportes. O “sistema” no qual está inserido, é descrito por ele como escravidão moderna e descreve a si mesmo como um entreposto de Moisés e super-herói :
‘O artista merece ser o proprietário de suas masters… artistas estão passando fome sem as turnês. Eu vou conseguir nossas masters….para todos os artistas…rezem por mim.’
‘Eu preciso ver todos os contratos na Universal e na Sony, eu não vou assistir meu povo ser escravizado, eu estou colocando uma vida em risco pelo meu povo. A indústria da música e a NBA são navios negreiros modernos e eu sou o novo Moisés’.
tweets de Kanye West
Estou fiquei sinceramente surpresa por Kanye se colocar como personagem bíblico coadjuvante (quem é Moisés na fila do pão?) enquanto todas as suas falas e performances mostram que o artista se considera o próprio messias. Por isso, acredito que o lugar controverso é estratégico para West se afastar dos meros humanos com suas bandeiras, causas e sofrimentos. Vamos lembrar que Jesus perdoou os piores pecados, chocou a sociedade, foi extremamente cringe ao longo de sua trajetória, por isso, quem somos nós para cancelar Marilyn Manson? Essas questões que ocupam a mente das patrulhas digitais já estão solucionadas há séculos pela bíblia, o que deixa Kanye livre para superar sua própria humanidade e trazer a redenção ao mundo, enquanto nos entretem com fofocas ótimas e a divulgação do endereço do Drake depois de uma treta com o rapper.
Ghost in the shell
Se nos anos 2000 e 2010 Kanye West almejava uma perfeição mecânica, tornar-se ciborgue à moda século vinte como em seu clipe “Stronger”, o Kanye West de 2022 rebatizado “Ye” parece abraçar as dinâmicas pós-Trump da onipresença dos bots e tornar-se mais do que seu maestro ou coreógrafo: ser o fluxo de informação em si. É deixar de ser o super-herói para ser o próprio devir, influenciando o curso dos acontecimentos.
Os próximos passos anunciados por Ye - a criação de um time de basquete (Donda Doves), uma escola cristã para crianças que segue seus princípios, investimentos no Tidal e em diversas outras empresas, sua marca Yeezy e uma possível candidatura à presidência dos Estados Unidos em 2024 - apontam exatamente para a direção que o artista já havia desenhado há mais de dez anos em “My Dark Twisted Fantasy”. Sua liberdade só será completa quando transcender o domínio que grandes operadores do capital ainda têm sobre ele.
A carreira de Kanye é a história de um homem se juntando para depois transcender a organização, tornando-se um espírito na casca: não dentro do sistema, mas do sistema. Mas mesmo essa perfeição mecânica não necessariamente traz felicidade[…]. Kanye parece o último norte-americano livre, poderoso o bastante para arrancar seu próprio coração e substituí-lo com algo mais eficiente, algo muito mais forte. Ele parece querer representar uma possível solução para o nosso vazio, se desviando da simbiose anuladora da vida corporativa. Ele está derrotando o sistema tornando-se o próprio.”
Mike Barthel, 2010.
Ye, aliás, quer dizer “vós”, o mais formal dentre os pronomes pessoais, reforçando a ideia de que Ye não é mais um indivíduo, mas um sistema, um fluxo que ainda mantém algumas raízes humanas, o gênero masculino talvez a mais indissolúvel delas. Não é coincidência as aparições cada vez mais cobertas por máscaras, luvas, espinhos, couro e látex: a anonimização de sua figura é parte da transcendência para a incancelabilidade. Rezar ao lado de um neo-nazista não lhe provoca nenhuma emoção ou julgamento, atear fogo em si mesmo já não provoca mais nenhuma dor, a felicidade é irrelevante ao lado do tamanho de sua missão.
Agradeço a Malinda Thursz-Galindo por me contextualizar no babado Julia Fox.
Beijo enorme e até a próxima!
Vivian Caccuri
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