Mulheres brancas e sound systems
Uma estranha imagem habita o imaginário pop desde o século passado: a de mulheres brancas em feliz comunhão com sistemas de som.
Oi gente! Meu nome é Vivian Caccuri, sou artista visual e mestre em Estudos do Som pela Escola de Música da UFRJ.
Sobrevivi mais um mês sem pegar covid e estou feliz por ter escrito mais uma newsletter pra vocês. Vamos direto ao assunto porque escrevi muito dessa vez.
O rolê sonoro da mulher branca
Mulheres brancas estampam anúncios de sistemas de som desde o século dezenove. São hi-fis, vitrolas, walkmans, fones de ouvido sem fio, toca-fitas, electrophones, CDs, falantes bluetooth, iPods. Independente da tecnologia e período histórico, a mulher branca é uma referência sensorial dos aparelhos de som nessas fotografias e pôsteres.
Incorporando melodias, ritmo e sensações agradáveis em poses relaxadas, essas imagens são um teaser ótico do que virá pelo ouvido: um bom sistema de som é sempre uma companhia agradável, assim como a de uma mulher jovem, bonita e simpática.
Mas como bem sabemos (eu sei bem), estamos entrando num terreno perigoso. Conforme fui olhando alguns milhares de fotos desses anúncios e editoriais de revista, deu pra concluir que a ausência das mulheres racializadas nesse tipo de mídia é quase completa até o começo dos anos 2000, com exceção dos fabricantes japoneses que nos anos 80 e 90 eram representados por modelos asiáticas.
A primeira coisa que me vem à cabeça quando vejo essa multidão de fotos de mulheres brancas seduzidas por equipamentos de som (estou no pacote) é um trabalho de performance que assisti na Bienal de São Paulo em 2016. “Narciso e Eco” da artista e escritora portuguesa Grada Kilomba, explica a dinâmica do narcisismo branco em uma palestra-performance :
Narciso – que é apaixonado por si próprio – passa a ser a história da branquitude, que é apaixonada por si própria e que se vê e que se olha, sempre a si própria e que possivelmente sempre produz a imagem de si própria. Eco passa a ser a imagem que se repete. Eco que só pode dizer a última palavra de Narciso, passa a ser o consenso branco que sempre autoriza Narciso, o discurso de Narciso. Então tem tudo aquilo que nós sabemos e pensamos que sabemos, […] de transformar a história e contá-la de uma outra forma e falar de questões que são pós-coloniais: a questão da identidade negra, do gênero, da violência e etc.
Grada Kilomba em entrevista em 2020.
Arrisco dizer que no mito de Narciso, Eco é também a mulher. Eco também representa a mulher branca que repete e reproduz o discurso do status quo, seja através da moral, da educação, sua objetificação ou imagem. Parece contraditório, mas é como se fosse uma autorização obediente.
A mulher branca muitas vezes desempenha um papel de ciborgue (alô Siri, alô Alexa) e não precisa necessariamente ecoar o consenso de forma ativa para multiplicar o narcisismo branco, basta existir passivamente como tal para servir de espelho a Narciso.
Existem outras razões para a mulher branca ser o material preferido para as metáforas do prazer sonoro, sinônimos de eficiência tecnológica, graça e precisão? Acho que o binário trabalho X lazer é um ótimo lugar para começar.
Do trabalho para a descompressão
Eu prefiro dançar de biquíni com fones de ouvido a tarde inteira do que ser telefonista em uma guerra mundial. Mulheres norte-americanas substituíram os homens em funções não-combativas (como a comunicação militar) durante a Segunda Guerra Mundial. Mas bem antes em 1897, já era convenção as companhias telefônicas empregarem mulheres para serem suas operadoras. Claro que não foi sempre assim. Os primeiros operadores de telefone eram meninos adolescentes. Uma boa ideia para deixar o negócio barato era esse, empregar filhos de pais trabalhadores para o função repetitiva do atendimento, se não fosse o completo caos que esses pirralhos faziam. Na prática, eram incontroláveis, mal-educados com os clientes, viviam mandando ligações pro lugar errado de propósito.
Entendendo que não dava pra trabalhar com moleques, essas primeiras empresas telefônicas tiveram a brilhante ideia de testar mulheres para a mesma função. Trabalhariam mais de dez horas por dia e ganhariam um salário mensal de dez dólares. Rolou. Eram obedientes, educadas, eficientes mesmo ganhando mal.
Quando as grandes guerras acabam, sobram as novas tecnologias desenvolvidas pelas forças armadas e uma demanda infinita por prazer sensorial. Em geral, as tecnologias usadas para o lazer são uma versão açucarada de uma tecnologia militar, claro, com excessão do vibrador.
Eu prefiro ter orgasmos auditivos a trabalhar de telefonista num subsolo com outras cem mulheres. O documentarista britânico Adam Curtis dedicou sua série mais recente a descrever o entrelaçamento entre as transformações da economia, da sociedade e o amadurecimento do individualismo. E para provar alguns pontos, foi preciso falar sobre o fim do socialismo. Com a decadência e fim da União Soviética, a demanda por sistemas de som cresce na classe média alta dos antigos países do bloco, muito alimentada por esse novo individualismo - o hiperindividualismo - cujo um dos pilares é a busca da satisfação sensorial e das “experiências”, como descreve Curtis.
A revolução pelos ouvidos
Você já deve ter percebido que escolhi muitas imagens de mulheres com fones de ouvido. Além de serem uma forma retórica, uma promessa de emancipação enquanto a realidade prova o contrário, acredito que é nas imagens com fones de ouvido onde o apelo escapista do som fica mais exagerado e a expressão do hiperindividualismo se multiplica: com fones de ouvido vivemos a ilusão do controle total e esse é o seu apelo “subversivo”.
Existe uma grande diferença entre o teor da mensagem dos anúncios de sistemas de som comuns e das propagandas onde mulheres estão usando fones de ouvido. Até o meio dos anos sessenta, os anúncios dos hi-fis, grandes sistemas de som domésticos, repetem com mais frequência os clichês da publicidade de eletrodomésticos do pós-guerra e seus esteriótipos de rainha-do-lar e princesa encastelada, talvez pelo fato desses aparelhos serem desenhados para a arquitetura doméstica e para fazerem parte de mobília, um patrimônio familiar.
Nos anúncios de hi-fis do final da década de 60 em diante, o comportamento feminino nem sempre é o da “mãe”. Em ressonância com a revolução sexual, agora são bem-vindas as amantes, crushs ou namoradas, que apesar de insinuarem uma relação consensual muito mais flexível e moderna que o matrimônio, ainda estão diagramadas para o deleite masculino. Olhando essas imagens, é bem difícil acreditar que eram elas quem escolhiam a trilha sonora da sentada.
Espero que neste ponto da newsletter você já esteja suspeitando que os sistemas de som e suas propagandas refletem as aspirações sociais do momento, além de sua realidade material e tecnológica. E não é diferente nos anos 80 e 90, quando os sistemas de som ficam cada vez mais compactos e portáteis, acompanhando a tendência de núcleos familiares cada vez menores, o mercado cada vez mais lucrativo do público adolescente e o começo da fusão cultural entre esportes individuais, música eletrônica, wellness e equipamentos portáteis com fones de ouvido.
Somos tanto parte do sistema que é impossível olhar para fora dele
O triunfo do sistema de som wireless, em especial dos fones de ouvido bluetooth, gerou mais outra infinidade de imagens de mulheres brancas que se rendem ao equipamento, ao som e à sua qualidade. E como em todas as outras décadas, esses dispositivos e a construção dessas imagens nos dizem algo sobre o espírito do tempo.
A primeira coisa que me chama atenção é que esses novos fones de ouvido viraram ferramentas de “self expression” ou “auto-expressão”, sejam eles mais voltados para o mercado de wellness (esportes, relaxamento, atividades ao ar livre), moda (designs diferenciados, cores, street wear, etc), de consumo musical ou até mesmo dos três juntos.
Mas qual o conteúdo dessa tão desejada expressão pessoal, já que essas mulheres estão gatas porém em silêncio, concentradas nas músicas que elas próprias escolheram ou que o algoritmo dos serviços de streaming curou para elas? “O que os psicanalistas chamam de exibicionismo é decisivo para a eficiência desse sistema de vigilância algorítmica que alicerça a economia digital.” diz a artista, professora e escritora Giselle Beiguelman no seu livro recém-lançado.
O que parece é que o próprio consumo é o conteúdo da tal “auto-expressão” no momento em que vivemos. Essa expressão não encontra outro lugar significativo para o capital, se não as redes sociais. E como grande parte da economia atual depende da mineração massiva de dados da maior diversidade demográfica possível, uma publicidade direcionada para pessoas brancas não encontra mais função nesse estágio do capitalismo e precisa incluir todos os perfis étnicos.
Vivemos incertezas profundas sobre o futuro, escassez de visões otimistas sobre a sociedade e paira sobre os millennials uma plena convicção de que o capital dita todas as decisões políticas, não importa o quanto protestamos ou choramos. Continuamos procurando aquilo que confirma o nosso próprio ser, transformando nossas lutas em clickbaits e buscando o “empoderamento”. A fé de que a música que escolhemos é uma das poucas coisas que ainda controlamos segue inabalável e ser vista nesta pequena bolha auditiva é ainda muito, muito sexy.
Em memória do meu avô sensacional que faleceu este mês. Sempre disse sim pra vida mesmo quando o mundo dizia não.
beijos e até mês que vem,
Vivian Caccuri
Estou apaixonada pela sua newsletter. Obrigada por compartilhar suas ideias.