Toda canção de amor é política
Olivia Rodrigo na Casa Branca e o cantor sertanejo Eduardo Costa 'ameaçado de morte' mostram que toda canção de amor é na verdade, política.
Oi gente!
Meu nome é Vivian Caccuri, sou artista e mestre em Estudos do Som pela UFRJ. Sou autora do livro “Oq Faço é Música” e também produtora musical. Estou atualmente com uma instalação sonora no High Line em Nova Iorque e produzindo podcasts para a revista suiça Norient e para a comemoração de 100 anos de Joseph Beuys no Goethe Alemanha.
Se você ainda não assina a Fritness, clica aqui!
Nesta edição
Há mais de um ano eu estou viajando no livro “Love Songs: a Hidden History” de Ted Gioia e outros desse historiador. Resolvi compartilhar um pouco com vocês. Meu objetivo é entender como a canção romântica coloca seres humanos disfuncionais (músicos) em posições perigosas de poder e má influência sobre corações vulneráveis.
Todo brasileiro não-minion já entendeu na prática que as paixões movem montanhas e transformam suas tias, antes fofas e inocentes, em monstras fascistas. É preciso se apaixonar cegamente nem que seja através de ódio, mentira e ilusão, para acreditar que alguém como Bolsonaro pudesse ser um bom presidente. As pessoas se apaixonam sozinhas? Não, como você sobrinhx, filhx e irmãx de fascista bem sabe. Paixões são coletivas porque nós aprendemos a amar em sociedade e a sociedade é um jogo sujo de derramamento de sangue por dinheiro. Nossa Vivian, que dramático! Bebê, o texto é sobre amor. Tá achando ruim? Vai lá rolar seu Tinder e me deixa aqui sendo demissexual o quanto eu quiser. A partir do próximo parágrafo, eu só vou falar com os emos e almas sofredoras que me merecem.
Amor é coisa de pobre
Vamos pensar na antiguidade, em Roma, época que os bolsonaristas e paleoconservadores adoram. Os romanos sabiam que o amor romântico existia, mas em geral, desdenhavam do amor. Amar romanticamente era quase uma piada e até mesmo um atestado de pobreza, já que quem tinha poder e posses tinha seu casamento arranjado pelas famílias e políticos para que seus bens não se diluíssem na plebe.
Existe uma teoria polêmica que diz que o poeta romano Ovídio foi exilado na Romênia por ter escrito o Ars Amatoria, uma espécie de manual do amor para homens e mulheres. O imperador Augusto teria achado aquilo tudo uma baixaria, um material perigoso para Roma e expulsou o poeta da capital. A teoria mais recente diz que tudo não passou de um golpe de marketing, ops, uma “estratégia de storytelling” pra que o poeta aumentasse a importância da própria obra, assim como o sertanejo Eduardo Costa fez com seu single “Cuidado” (chegaremos nele).
É comum também alguns acadêmicos dizerem que os escravos eram os que melhor conseguiam expressar o amor musicalmente em vários momentos da história, já que tudo que possuíam era completamente liquidado na hora que eram sequestrados, sobrando só sentimentos. Como bem sabemos, suas músicas influenciaram todo um rolê de apropriação das classes dominantes que conseguiu de fato esconder a verdadeira autoria dessas canções.
Ted Gioia, historiador e autor de “Love Songs: The Hidden History”, chega até a afirmar que os trovadores medievais re-introduziram a música romântica na Europa se apropriando das canções das escravas otomanas Qiyan, uma classe de mulheres cortesãs escravizadas que eram treinadas em Andaluzia para cantar, tocar instrumentos, declamar poesia e compor. Assim, no DNA da canção de amor ocidental estaria impressa a forma feminina e muçulmana de sofrer e amar.
Ao longo da história, a expressão musical de um sentimento que seja amor, tesão, desejo, que dura uma vida toda ou uma noite, sempre foi entendido como a expressão das classes oprimidas, e por isso, credo! Nojo! Amor é coisa de pobre. Sentar? Quicar? Fuder? Sarrar? Coisa de favelado. Você pode até fazer, mas cantar sobre isso? Baixaria! Vamos continuar que eu ainda vou te convencer que “Meu Pau Te Ama” é quase um “Bella Ciao!”.
Amor, esse sentimento ocidental
Não eram só os romanos que não shipavam a ideia de se apaixonar. A expressão do amor romântico também não é comum em muitas sociedades tradicionais não-ocidentais, como por exemplo com os indígenas norte-americanos Crow ou os aborígines australianos Alawa, como conta Ted Gioia em seu livro.
Segundo o antropólogo Júlio Cezar Mellatti, cada povo indígena brasileiro possui regras matrimoniais próprias e muito diferentes umas das outras: monigamia, poliandria, poligamia, casamento grupal e outras. O que existe em comum entre eles é a compreensão que um casamento é uma ferramenta para criar alianças, facilitar acordos. O casamento é uma forma de expressão da identidade de um povo, uma identidade que aliás, está sempre mudando justamente por causa dos casamentos. Ainda na década de 60, o antropólogo observou que em geral, os indígenas não se abraçavam, não se beijavam e expressavam o afeto de formas diferentes das nossas. É simples: se nessas sociedades não existe a forma ocidental de se amar, ninguém vai cantar o amor do jeito que a gente espera.
Nós vivemos essa forma colonizada de amor. Esse sentimento não é “natural” e sim construído. Nessa construção, reproduzimos aquilo que nos foi ensinado: a ideia de submissão feminina, a situação deprimente do corno, “tô solteira” como sinônimo de putaria e bebedeira, a paixão como perda da autonomia, a amante (e não o traidor) como verdadeira inimiga, o clube como o lugar do sexo em público, a casa como o lugar dos sentimentos verdadeiros, a lista é infinita e sempre mutante.
Existe forma artística que mais expressa as moralidades, preconceitos e comportamentos do momento que a canção de amor? Conta pra mim!
A canção de amor dá poder para quem canta
Corta para 2021: cantores sertanejos ganhando milhões de reais com canções de sofrimento amoroso. O que aconteceu com a gente? Somos agora seres humanos evoluídos, cheios de amor? Longe disso. Nós só abrimos espaço para o amor existir como sentimento aceitável muito recentemente, o que não elimina de nenhuma forma os preconceitos e a parte “vergonhosa” do amor. Temos muita vergonha das canções românticas, cantamos “Evidências” bêbadas e com muita ironia, assim como Joelma e Barões da Pisadinha.
Sim, é cringe para a pessoa comum cantar uma música romântica. E é justamente para isso que existe o popstar: sua função na sociedade nada mais é do que fazer tudo aquilo que um cidadão comum não pode ou não tem coragem. Ser traída e assumir pro mundo inteiro? Um popstar dá conta. Casar dez vezes, ter filhos com 20 mulheres, dar um pé na bunda de um bilionário saudita? Fácil pra popstar. Quer brigar com sua esposa, arranjar uma amante na rua, levá-la para o hotel onde sua esposa está, transar com a garota e depois pular da sacada pra não ser pego? Um popstar tentou. O ídolo pop está sempre na vanguarda da transformação dos comportamentos sociais, sendo o amor o mais chamativo desses comportamentos junto com a violência, né DJ Ivis?
Desse jeito, fica mais fácil entender a obsessão em torno de Olivia Rodrigo, a cantora americana de 21 anos que virou a sensação de 2021. Adolescentes, esses seres bizarros que preferem se jogar da janela a falar o que sentem, projetam todas as suas angústias na voz dessa artista. Olivia Rodrigo dá a voz para o desespero dos adolescentes (e millennials, por que não?) que não sabem muito bem como se expressar, ou sabem, mas preferem cantar gritando.
Com tanto poder sobre corações e mentes, Olivia Rodrigo foi convidada pela Casa Branca no último dia 14 para engajar a população jovem na campanha de vacinação contra a Covid-19. No mundo populista em que vivemos, é preciso usar o poder dos ídolos para alavancar missões impossíveis, por exemplo, derrubar Bolsonaro ou fazer norte-americanos anti-vacina imunizarem seus filhos.
O amor é subversivo
O sempre polêmico Eduardo Costa, cantor sertanejo menos conhecido por suas músicas do que pelos barracos que sempre arranja, ocupa um lugar bastante interessante nessa discussão sobre a música romântica. Apesar de toda sua vida provar o contrário, ele canta músicas sobre amor verdadeiro e palavras de eternidade. E como vários outros artistas sertanejos, declarou apoio a Bolsonaro. (aliás, leia meu texto sobre sertanejos e bolsonarismo escrito no ano passado).
O que uma coisa tem a ver com a outra? Como vimos com Olivia Rodrigo e o poeta romano Ovídio, amor é assunto de Estado. É tão poderoso, e modula tanto os ânimos das pessoas que fazem opostos se unirem na dor da sofrência. É uma verdadeira arma política. O cantores sertanejos sabem disso muito bem, e não hesitam em sair do modo romântico para o político em um segundo.
Percebi que conseguimos eleger um político usando nossa influência como artista, mas não conseguimos tirá-lo de lá.
Eduardo Costa, em dezembro de 2020.
E foi exatamente isso que aconteceu com Eduardo Costa. O cantor, que afirmou estar cansado e arrependido de ter apoiado Bolsonaro, resolveu se expor mais uma vez, mas agora com uma música de protesto. Sua canção política “Cuidado” teve 14 milhões de views, quase dez vezes menos a quantidade de suas canções de amor, que geralmente batem mais de 120 milhões de views.
Nas semanas que seguiram o lançamento do single, Eduardo Costa afirmou na imprensa que sofreu ameaças de morte e que fugiria do país. Eu pessoalmente acho maravilhoso quando uma pessoa anuncia a própria fuga no jornal, acho muito sincero o desespero pelo holofote. Minha teoria é que ele usou essa estratégia para dar uma pequena bombada nessa música, que diante dos seus números habituais, é quase um fracasso.
De qualquer maneira, é um pouquinho animador ler os comentários desse vídeo no Youtube. O que parece, é que Eduardo Costa não está sozinho na sua insatisfação e sua música conseguiu inspirar outras pessoas a fazer coro contra a presidência. Mas como tudo na vida de Eduardo Costa dura pouco, amanhã ele pode mudar de ideia, falar o contrário, fazer o inverso e apoiar uma figura política ainda pior. Esse aqui definitivamente não pode entrar pro hall de artistas heróicos do Brasil, que aliás, cantaram todxs, músicas de amor.
Espero que você tenha aproveitado todo esse lado gostoso da minha demissexualidade, que com certeza vai voltar aqui na Fritness. Aliás, me seduza com seu intelecto e me mande um zap. Mandou nude eu dou block.
beijos e até mês que vem!
Vivian <3 <3 <3