Assombrologia: como falar com fantasmas
Como o som e a música buscam há séculos escutar e captar presenças fantasmagóricas dando forma a ideias filosóficas da persistência assombrosa do passado.
Oi gente! Meu nome é Vivian Caccuri, sou artista plástica e musicóloga mestre em Estudos do Som Musical pela UFRJ. Apresento nos dias 29 e 30 de agosto a performance “Fantasma Boca” no SESC Pompeia junto com meu companheiro Thiago Lanis. Clique aqui para mais informações e ingressos!
Nesta edição debato sobre um tema que eu adoro: o fantasma como um fenômeno cultural. É um assunto enorme e digno de muitos livros, mas vou falar rapidamente sobre as coisas que mais me intrigam como artista e pesquisadora do som. Aliás, esta é a playlist que eu e Thiago ouvimos para nos inspirar durante as semanas que criamos a performance “Fantasma Boca”.
“Os fantasmas deveriam ter sido deixados no Velho Mundo, mas aqui eles estão…”
Fisher, Mark. Ghosts of My Life: writings on depression, hauntology and lost futures (p. 128). John Hunt Publishing.
Meu pai é espírita e médium, convicto no Kardecismo. Desde criança vejo livros de Allan Kardec - francês fundador do Espiritismo - pelo apartamento onde cresci, e nunca soube direito se foram escritos pelo próprio Kardec ou por seu espírito psicografado. Essa escrita fantasmagórica e a salada mista de “ciência”, “ontologia” e cristianismo com os quais o Espiritismo costuma explicar o mundo sempre me deram arrepios e rejeição imediata, mas também sempre me interessaram. Veja como os espíritas explicam a existência humana em um organograma onde descrevem o “perispírito” (nosso fantasminha interno):
Quando adolescente, sempre que eu ouvia as explicações de como os órgãos internos funcionavam como uma espécie de “plug” de diferentes partes do espírito, meu estômago se revirava, mas meus olhos se reviravam mais. Ao mesmo tempo que eu me revoltava com o que considerava uma pseudo-ciência, vi meu pai se formando médium, completamente comprometido com sua comunidade e com a escola espírita onde ele dá aulas de elétrica para pessoas em situação de vulnerabilidade social, sem evangelização ou doutrinas. É uma mistura difícil e perigosa. No espiritismo existe uma grande diversidade de inclinações políticas, inclusive o bolsonarismo, e é notável como a ala esquerdista dos espíritas teve que reunir grandes esforços para corrigir o “racismo científico” com o qual Kardec justificou a evolução das almas (não li e também não tenho credenciais para dizer se tiveram alguma vitória nisso…)
E mais um dado estranho dessa religião: o homem que trouxe pela primeira vez o som gravado para várias capitais do Brasil e que depois de alguns anos abriu a primeira fábrica de discos do país (a Odeon), é também um dos fundadores do espiritismo brasileiro. O tcheco Fred Figner sempre me intrigou por ocupar esse estranho lugar duplamente pioneiro na indústria fonográfica brasileira e na religião que se baseia essencialmente em espectros magnéticos, ectoplasma e espíritos. Figner trouxe em 1891 o fonógrafo inventado por Thomas Edison para a América do Sul com planos de apresentar o som gravado para grandes públicos em diversos estados do Brasil, inclusive na Amazônia. Essas apresentações aconteceram em teatros e arenas e deixavam as pessoas completamente embasbacadas quando ouviam o som gravado em rolos de cera.
Mas como era de se esperar, muitas vezes o aparelho levantava dúvidas sobre uma natureza “demoníaca” da tecnologia: seriam aquelas inofensivas gravações de pessoas reais ou expressões diabólicas que encontraram um canal de comunicação através do fonógrafo? Este canal era tão vivo e possível na mente das pessoas da virada do século passado - um momento de grande popularidade do espiritismo - que o próprio Thomas Edison tentou inventar seu próprio instrumento para se comunicar com espectros. E mais, coloque-se no lugar de uma pessoa do século dezenove ouvindo a primeira gravação de voz humana da história (ouça no vídeo abaixo), e me responda: como não se apavorar?
É importante lembrar que o fonógrafo, nesses primeiros anos de sua difusão pelo mundo, era muito usado por etnógrafos e antropólogos para registrar a música e o idioma de povos estrangeiros às grandes capitais europeias e norte-americanas. Com os rolos de cera registravam-se fragmentos da vida não-branca. No início, essa ainda não era uma mídia artística, ainda não havia o propósito de consumo de música nessa tecnologia de gravação sonora. O som gravado pelo fonógrafo era uma espécie de documento e atestado de existência, o que tornava tudo ainda mais assustador para o ouvinte.
Frederico Figner, como é chamado no espiritismo, foi um importante filantropo da religião a partir de 1903, quando já possuía a primeira gravadora brasileira de discos, e essas atividades - empresário da música brasileira e líder espírita - se confundem até o fim de sua vida. Fred Figner e seu legado de fonógrafos, gramofones, discos e livros escritos por seu espírito são para mim o melhor exemplo de que em todo som gravado há uma pitada de fantasma.
Os fantasmas pós-revolução industrial
Medos herdados e religiões à parte, é preciso entender o fantasma como um fenômeno cultural. Este livro incrível da escritora inglesa Susan Owens, bastante centrado na cultura britânica dá conta de narrar uma história dos fantasmas de sua cultura, e segundo ela, o fantasma que identificamos no fonógrafo é uma assombração típica do mundo pós-revolução industrial. O fantasma pós-revolução industrial dá um passo à frente do fantasma do mundo pré-eletricidade. Este fantasma moderno se desprende das limitações das assombrações típicas das religiões pagãs e cristãs, da natureza, do mundo da cultura oral e passa a habitar máquinas, mídias e o mercado imobiliário (imóveis e fantasmas são praticamente uma coisa só).
Em 2023, o fantasma do mundo industrializado ainda está entre nós se expressando através dos medos e perguntas sobre a natureza assombrada do som e da transmissão de rádio por exemplo, e viram produtos para serem comprados. A prova é que nunca houveram tantos modelos de Ghost Boxes à venda. Veja essa enorme loja de equipamentos de “caça-fantasma”, a Ghost Shop: nela, os equipamentos de captação sonora paranormal são em maior número que os instrumentos que poderiam identificar fantasmas visualmente e permitem uma gama enorme de “escutas paranormais”.
Assombrologia: os fantasmas contemporâneos
Ideias contemporâneas de fantasmas são com certeza as que mais me interessam, e por isso falo aqui da assombrologia de Jacques Derrida. Se no século vinte os fantasmas eram entidades que escolhiam habitar certos espaços físicos, máquinas ou certas mídias e traumatizar indivíduos sensíveis a eles, a cultura e a filosofia contemporânea descrevem os novos fantasmas como sendo expressões da persistência do passado, sejam elas sistemas políticos, períodos traumáticos, ou violências históricas que custam séculos a simplesmente se auto-extinguir. O assombrado passa a ser menos personalizado também. Basta o indivíduo pertencer a um certo grupo que fora vítima de uma profunda distopia, como a colonização ou a escravidão. Os filmes de Jordan Peele são ótimos exemplos de histórias de neo-fantasmas: suas narrativas de assombração abandonam dramas ultra pessoais e abraçam concepções distópicas, sistêmicas e profundamente críticas a opressões históricas.
É da filosofia de Derrida onde nascem as noções de assombrologia ou hauntologia. São termos que querem explicar a persistência de Marx no pensamento contemporâneo, descrevendo a persistência dessas como um espectro, como fantasmas. Alguns anos depois dessa publicação, a assombrologia passa a ser usada também por autores como Mark Fisher e Simon Reynolds para explicar a persistência do passado na música pop, um tema sobre o qual já escrevi aqui.
O que se passa entre dois, e entre todos os ‘dois’ que se queiram, como entre vida e morte, só se há-de valer de algum fantasma. Seria preciso, então, dar lição aos espíritos. Mesmo e antes de tudo se isto, o espectral, não existe. Mesmo e antes de tudo se isto, sem substância nem essência nem existência, não está jamais presente enquanto tal. (DERRIDA, 1994, p. 10 -11)
O que Derrida quer demonstrar em “Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional” é que o fantasma é uma política da memória, uma herança das gerações. Para Derrida manter uma memória e assombrações presentes passa também por escolhas e pactos coletivos. No meu ponto de vista, a ideia de herança colonial é também a ideia de um grande fantasma, uma grande assombração sistêmica. Nós como sociedade, como artistas e autores criamos um pacto social de fé na existência dessa assombração, e por considerarmos ser uma assombração nefasta, ela é política e esteticamente caçada, com o intuito de ser anulada, expurgada, exorcizada da nossa realidade. Esta luta passa a se confundir com nossa própria identidade, e mudamos o trajeto de nossas vidas em função do fantasma da herança colonial.
O que sinto, para que eu não tenha uma existência regrada a partir do inimigo ou do indesejado, é que preciso convidar novos fantasmas para minha vida, preciso fazer um grande movimento de substituição do time das assombrações, pelo menos na arte e na ficção, que é onde tenho algum controle. É aí onde entra “Fantasma Boca”, o trabalho que criei junto com meu companheiro Thiago Lanis em uma viagem ao Coriscão, floresta do Rio de Janeiro.
Enquanto assistíamos toda noite ao pôr-do-sol, ouvíamos um a um os insetos noturnos surgindo, insetos que nunca antes ouvimos na cidade. Thiago aprendeu a imitar cada um deles com a boca. Nosso trabalho, é reabitar a cidade com os fantasmas dos bichos que dali desapareceram, utilizando o som. Thiago incorpora os bichos através dos ruídos de sua boca e eu o gravo ao vivo, criando uma cena espacial com todos eles.
“ Nós viemos de grandes cidades onde as florestas não estão mais presentes, nesse sentido nós queremos estabelecer um diálogo sonoro com seus fantasmas, com o passado que está por trás da ausência das florestas. A construção dos bichos na minha boca é também um auto conhecimento. Os animais que eu deixo atravessar meu corpo são os que eu sei que também fazem parte da minha estrutura. O som desses animais também têm acesso ao meu corpo… a conversa com os fantasmas dos bichos é encontrar esses acessos.”
Thiago Lanis, agosto de 2023.
Agradecemos ao iii - instrument inventor institute, ao Novas Frequências, ao Festival REWIRE, ao SESC Pompeia e Associação SU, que fizeram este trabalho possível. Venha nos ver e ouvir nossos fantasmas.
um beijo,
Vivian Caccuri
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