Decolonizando o protagonismo do techno
A música árabe eletrônica ganha cada vez mais espaço em clubes e festivais pelo mundo, celebrando sua complexidade e o LGBTQIA+ em oposição ao pragmatismo do techno.
Nesta edição
A onda da música árabe, turca e persa nos clubes do Norte Global e uma playlist com meus artistas preferidos.
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Oi pessoal,
Meu nome é Vivian Caccuri, sou artista plástica e musicóloga. Escrevo nesta newsletter sobre som, música e outros assuntos que acabam me rodeando na vida e no trabalho. Este mês lancei junto com a Handred a coleção ENTRE-ONDAS, uma coleção de roupas inspiradas nos meus temas - música, som - e com meus desenhos. Aliás, dê uma olhada na nossa campanha, com trilha sonora feita pelo Estúdio 0SS0, meu estúdio de trilhas originais em sociedade com Thiago Lanis.
Saindo do grid
Festival REWIRE, Holanda. A cidadezinha de Haia, onde vivi por um mês com meu companheiro Thiago Lanis para criar a performance Fantasma Boca, de repente deixou de ser um lugar parado e previsível para virar uma das melhores aventuras musicais do meu ano. Eu e Thiago, exaustos depois das nossas apresentações no REWIRE, fomos assistir o set da compositora, DJ e produtora tunisiana Deena Abdelwahed. Era o quarto show que veríamos naquele dia e a casa do Concordia CC estava lotada, cerca de mil pessoas.
No meu primeiro relance em Deena, vi uma mulher jovem em seus trinta e poucos anos, magra com braços fortíssimos, cabelo muito cacheado penteado pra trás, calça de couro, quase sem maquiagem e uma cara completamente contorcida. Ela girava botões, batia em uma mesa amplificada com os dedos, pisava no chão marcando o ritmo e falava em um microfone silencioso com o qual conversava e controlava seu parceiro de palco, que tocava outros instrumentos eletrônicos e alaúdes tradicionais belíssimos. O som dela era potente, eletrônico, mas não era techno. Tudo muito contagiante. Austero, grave, maldoso, cheio de percussão e melodias sinuosas. Os europeus que estavam totalmente duros até meia hora atrás, pareciam cachorrinhos dominados pela artista enquanto dançavam e suavam. De repente, Deena se aproxima de outro microfone, agora aberto para o público: uma voz linda canta em árabe. Canta pouco, canta o necessário pra enfeitiçar geral. Me apaixonei. Como é possível esse ser humano? Deena, faça agora o que quiser com esta fiel ouvinte e bailarina, sou sua tiete e dedicarei textos a você no meu blog.
Essa crônica ilustra bem o que acontece toda vez que tenho a oportunidade de ir a festas de música árabe: esses sons e ritmos se infiltram no corpo e sou possuída por um demônio dançante. E sei que não estou sozinha, já que a maioria dessas festas já estavam esgotadas há dias quando aconteceram.
Assista ao show binaural de Deena Abdelwahed no IRCAM, um dos maiores centros de música contemporânea e tecnologia da Europa, onde ela cria música eletrônica batucando seus ritmos em uma mesa de madeira com seus dedos, anéis e um frasco de vidro.
Há de fato uma crescente sede por esse tipo de som, que é difícil de definir já que existem centenas de gêneros. Nesta pequena pesquisa que fiz, compreendi que no desejo por música árabe existe uma vontade de melodia, nostalgia, uma vontade de recuperar ou reinventar uma identidade perdida ou diluída na imigração. Ao mesmo tempo, existe também um desejo grande de reparação de opressões - como a enorme intolerância contra a população LGBTQIA+ dos países de origem. Nas festas, essas utopias são ensaiadas na pista.
Arabescos sem fim
Essa não é minha única história de tietagem a um artista que canta em árabe. Já houve uma vez que eu de fato assediei online a dupla síria Tootard e acabei conseguindo fazer dois amigos. Depois de ouvir todos os álbums da dupla e de ter amado a proposta disco do mais recente, eu tive vontade de tentar virar amiga deles. Entrei para o instagram do Tootard para mandar emojis e mensagens de fã sem noção. Pra minha alegria, não só eles me responderam, como acabamos nos encontrando alguns meses depois na Europa onde eu estava montando uma exposição.
Na Dinamarca, onde custa-se muito a dançar, eu vi os dois irmãos incendiarem o principal clube de Christiania. Pessoas saíam do Loppen suadas, exaustas, felizes, rindo, uma vibe um pouco diferente das enormes raves de techno onde o sarcasmo e o niilismo são uma imperatriz de cintaralha e catsuit. Quem me deu esta teoria da música árabe ser uma espécie de antítese do techno, foi o próprio Hasan Nakhleh, o primogênito dos Tootards.
Segundo ele, a Europa está se saturando do som abstrato e repetitivo do techno, e como o ouvido é um ótimo - talvez o melhor - aventureiro, abre-se uma oportunidade para sons hiper melódicos como a disco e os gêneros árabes. Os gêneros do Oriente Médio ainda tem uma característica que eu adoro, que são os “meio semi-tons”, que criam um sistema de notas musicais incrivelmente maior que a da música ocidental, além de uma diversidade rítmica que resiste bravamente ao enquadramento no 4 por 4.
O sucesso do Tootard é um bom indicador de como o Norte Global está sedento pelos sons do Oriente Médio. Somente no ano passado eles realizaram quarenta shows, inclusive no programa da Documenta de Kassel e em festivais gigantes como o Pop Montreal. Este ano, já tocaram no famoso WOMAD, terão datas no Roskilde Festival, em mais quinze cidades da Europa, além do Japão e Coreia.
Geração ancestralidade
Segundo Nadim Maghzal, organizador da festa Laylit que acontece em Nova Iorque, Montreal e outras grandes cidades da América do Norte, tocar música árabe no passado recente era a coisa mais cringe que se poderia tocar em uma festa no Líbano, onde morava antes de Montreal. A egípcia Myyuh, organizadora da festa nova iorquina Haza, também se recorda de ficar constrangida quando sua mãe tocava as músicas árabes em volume alto. Hoje, essas músicas são suas principais atividades. Mas o que aconteceu para que os jovens das diásporas do Oriente Médio finalmente abraçassem suas raízes através da música?
“O que está acontecendo com as diásporas árabe, turca e persa na Europa agora é que todos estão procurando sua identidade.” diz Hasan Nakhleh do Tootard, no telefone para mim, “fazer música, se divertir e fazer festas com nosso próprio som, é uma maneira de conseguirmos encontrar nós mesmos e de fazer perguntas sobre nossa identidade.”
Para Nadim Maghzal, foi quando ele imigrou para o Canadá nos anos 2000, que se sentiu o desejo de redescobrir suas origens através da música. Para seu sócio, Phillip Manasseh, esse movimento de auto-afirmação ficou mais forte também depois que Donald J. Trump foi eleito.
O que parece é que, ouvindo ao depoimento desses organizadores e artistas, as diásporas árabes, turcas e persas estão agora colhendo o auge de uma maturidade artística que já estava se formando há algumas décadas.
Abraçar a complexidade
Fazer as pazes com a música de suas origens é bastante profundo. No momento em que deixamos nosso local origem, existe uma necessidade quase obrigatória de assimilação da cultura do novo país. Muitas coisas são apagadas, de forma forçada ou simplesmente no caos que muitas vezes deve ser viver como imigrante. Em grandes cidades do Norte Global, onde todos têm histórias densas, passados em outras geografias (e com frequência traumas), o techno virou uma plataforma de encontro mais ou menos democrática, uma espécie de folha quadriculada onde conseguimos suspender essa complexidade humana por algumas horas e viver na repetição da batida matemática de 133bpm, sem precisar lidar com a complexidade humana de forma estética. O techno substitui a emoção figurativa da canção pelo transe abstrato do beat e o drama some (some?) nas drogas.
De origem preta e proletária, o techno que nasce em Detroit é revolucionário em seu futurismo e inovação. Foi a partir do techno, do house e da disco que se formou uma cultura de clubbing global, que culminou nos gigantes clubes de techno de 2023. Mas estamos falando de um quase boomer: próximo de completar 50 anos, o techno nunca esteve tão financeiramente rico e pouco lembra o do-it-yourself de suas origens. O techno atual é uma extrema redução musical: o ritmo é reto, em geral não há vocais, harmonias bastante simples, não há contrapontos complexos, o techno opta por outro caminho e prefere dedicar-se ao timbre, ao hiper sensorial. Por ser tão sintético e de relativo baixo custo, ganha-se velocidade na produção, distribuição e performance nos clubes. O techno ganha em escala quando reduz sua complexidade e por isso, tornou-se um vírus cultural.
A música árabe para mim, vai na contra-mão. É uma música onde é impossível retirar a artesania por completo. Nas festas que pude ir, sinto que as portas do conflito estavam abertas, da psicodelia, da nostalgia, das melodias, das letras que se cantam em coletivo na língua de origem, celebrando também o queer e as mulheres. Eu fico passada com a lindeza que às vezes a geração millennial consegue ter: em meio a tantas derrotas econômicas, na arte, pelo contrário, os millennials diaspóricos dão aulas.
O set do marroquino Cheb Runner em Berlin que pude ver ao lado de Hasan, por exemplo, foi uma aula de música eletrônica decolonial, já que não havia nenhum BPM recorrente ou “ritmos ocidentais” e, mesmo na intensidade eletrônica enorme que foi, os sons e ritmos ainda carregavam dados culturais e identitários sem o mínimo efeito Buddha Bar, ou seja, não eram releituras “étnicas” de ritmos ocidentais, mas a própria possibilidade de uma música eletrônica dançante a partir de uma identidade não-ocidental, mesmo que ela queira se encontrar de vez em quando, com a disco, com a house music ou até mesmo, com o techno.
Os artistas do Oriente Médio estão nos ensinando algo. Talvez possa ser um pouco cedo para entender a mensagem completa e com mais clareza. Enquanto a ficha não cai, vou gostar de continuar me derretendo na descoberta. Conte para mim o que achou da playlist?
um grande abraço e até a próxima!
vivian caccuri
Uau, que texto! E totalmente em sintonia com o que eu ando consumindo por aqui. Pensei também na música brasileira que, por muito tempo, foi bem renegada pelos mais jovens e hoje estamos todos fechando os olhos enquanto nos deixamos levar por "Cantico Brasileiro", da Maria Rita Stumpf, remixada pelo Carrot Green. Eu amo sons arabescos, acho até que ele ressurgiu de um lugar bem colonizado (pensando no quanto achavam "cringe" anteriormente) no início, ou seja, nas mãos de djs brancos do norte do globo que colocaram as sonoridades do Oriente Médio no deep house e tem gente até que chama "música estilo Burning Man, sabe?". Mais colonizado do que isso? Mas enfim, pensando mesmo no Brasil em como fomos abraçando a música brasileira e conhecendo novos (velhos) artistas através de gringos que começaram a colocá-los para tocar nas festinhas nos 4 cantos do planeta, o caminho se inverteu e, nós brasileiros, começamos a resgatar essa história que não prestávamos a menor atenção. E, amo ver hoje aqui em Berlim o "arabismo" (como eu chamo) tomando conta das pistas. Arkaoda, Gretchen e tantos outros cantos!! E graças à você, acabei de ver que o TootArd vai tocar aqui no mês que vem! :) Não conhecia, obrigada pela indicação.
A Deena é uma mulher do além, né? Acabei de voltar do Sónar e ela e o Ryoji Ikeda foram os dois artistas que mais amei ver. Eu tinha visto a Deena no Sónar, em 2019, e depois em Berlim, mas MEUDEUSDOCÉU, que show mais lindo foi esse que vi (provavelmente o que vc deve ter assistido no Rewire). Ainda estou aqui sob efeito sonoro dela.
Quando estiver em Berlim, dá alô! Quem sabe vamos para uma festinha arabesca? Bjs (desculpa o textão).
oi vivian! me deparei com a complexidade desse mundo através do teu texto. desde então, tenho escutado tua playlist e partindo dela como quem tem um portal pra esse universo lindo e energizante bem em frente. de fato é o que eu sinto. é muita alegria quando nos deparamos com algo assim, e por isso, muito obrigada pelo ato de compartilhar!